Especialistas e gestores debatem viabilidade da tarifa zero no transporte de Viçosa
A Câmara Municipal de Viçosa realizou, na noite de ontem, quarta-feira (17), uma audiência pública para debater a implantação da Tarifa Zero no transporte coletivo do município, iniciativa solicitada pela vereadora Jamille Gomes (PT). O encontro reuniu especialistas, gestores públicos, representantes estudantis e membros da sociedade civil, com o objetivo de avaliar a viabilidade técnica, financeira e social da proposta. Foram apresentados estudos, experiências de outros municípios e análises detalhadas sobre os impactos econômicos e sociais, reforçando a importância de um planejamento cuidadoso para garantir o acesso universal ao transporte público e fortalecer a mobilidade urbana em Viçosa.
A discussão começou com a apresentação da doutoranda Neiva Aparecida Pereira Lopes, que trouxe um panorama histórico e atual do tema no Brasil e defendeu a viabilidade da proposta no município. Ela explicou que seu estudo acadêmico é fundamentado em três dimensões: econômica, social e ambiental, ressaltando que a gratuidade não significa ausência de custos, mas sim um financiamento via impostos. “Tarifa Zero é a pessoa andar de ônibus sem pagar a tarifa. Quer dizer, não tem nenhum custo direto para a pessoa, mas é financiada pelos tributos”, afirmou.
Ao contextualizar a trajetória da ideia no país, Neiva destacou a atuação de Lúcio Gregori, que apresentou o projeto em São Paulo ainda na gestão de Luiza Erundina, e o impacto das manifestações de 2013, quando, segundo ela, “não era pelos 20 centavos, mas contra um sistema falido e a má qualidade do serviço prestado”.
Ela lembrou que, após a pressão popular, o transporte passou a ser reconhecido como direito social na Constituição, e que hoje tramitam mais de 70 projetos sobre o tema no Congresso. Neiva também apresentou dados recentes, mostrando que “o Brasil se tornou líder mundial em Tarifa Zero a partir de 2024, com 137 municípios adotando o modelo”.
A pesquisadora ressaltou exemplos de cidades como Caucaia (CE) e Maricá (RJ), que destinam entre 2% e 3% do orçamento municipal ao transporte gratuito, com forte impacto social e econômico. “Sem dinheiro você não consegue procurar emprego, chegar ao médico ou ao lazer. O transporte é o direito meio que garante os demais direitos”, pontuou.
Sobre Viçosa, Neiva avaliou que a implantação é possível, mas depende de renegociação do contrato com a empresa União e de planejamento adequado. Entre as medidas sugeridas estão a criação de um Conselho Municipal de Transporte e de um Fundo Municipal para gerir os recursos. Ela também defendeu novas fontes de receita, como a publicidade em ônibus e pontos, além da ampliação de políticas de prioridade ao transporte coletivo.
EXPERIÊNCIA DE MARIANA
A cidade mais próxima de Viçosa que conta com o benefício da Tarifa Zero é Mariana. O diretor do Departamento Municipal de Trânsito, Eliabe de Freitas, apresentou a experiência do município na implantação do programa. Ele explicou que Mariana enfrentou, durante anos, dificuldades no contrato de concessão do transporte coletivo, agravadas pela crise após o rompimento da barragem de Fundão. Segundo ele, a precariedade contratual e o desequilíbrio financeiro levaram à redução de linhas e horários. “A empresa suprimiu várias linhas, alegando esse desequilíbrio no preço da tarifa pública”, relatou.
A ideia da Tarifa Zero surgiu em 2019, a partir de consultorias contratadas pelo município. Ele destacou que, em 2021, a Câmara de Mariana aprovou, após debates e audiências, a implantação do programa, que começou a funcionar em fevereiro de 2022. Desde então, todas as linhas urbanas e distritais passaram a ser gratuitas.
De acordo com Eliabe, o modelo é custeado integralmente com recursos do município, que paga pelo serviço prestado, calculado por quilometragem rodada. “Hoje, Mariana não gasta R$ 1,8 milhão com o Tarifa Zero. É um investimento que traz uma política pública eficiente para os marianenses”, afirmou.
Encerrando, ele classificou a iniciativa como a maior política pública já implementada no município: “Dá às pessoas acesso à saúde, à educação e ao trabalho. É motivo de muito orgulho para nós”, concluiu.
DEMANDA REPRIMIDA
A engenheira de transportes da Prefeitura de Mariana, Cristiane Costa Gonçalves, apresentou dados do impacto da mudança: antes da Tarifa Zero, eram cerca de 180 mil passageiros por mês; após a implantação, esse número chegou a 700 mil, com destaque para linhas em áreas de maior vulnerabilidade social. “Isso mostra o impacto da política no deslocamento das pessoas”, observou.
Cristiane relatou ainda mudanças no cotidiano: maior presença em eventos culturais, no lazer e no esporte, além de relatos de famílias que passaram a direcionar a economia do transporte para educação, como cursos de inglês para os filhos. Também ressaltou a integração com saúde e educação: “O transporte não tira recursos dessas áreas, ele fortalece ambas”.
Segundo ela, o transporte gratuito representa apenas 2,6% do orçamento municipal e funciona com pagamento por custo fixo e quilometragem rodada, com monitoramento em tempo real das viagens.
ANÁLISE DE CUSTOS
O professor Evonir Pontes de Oliveira, do Departamento de Economia da UFV, destacou a importância de discutir a viabilidade financeira da Tarifa Zero em Viçosa. Ele ressaltou que não há oposição ao programa, mas sim a necessidade de avaliar custos e receitas com responsabilidade.
Segundo Evonir, a tarifa é composta por quatro elementos principais: custo operacional, subsídio público, quilometragem rodada e número de pagantes. Nesse contexto, ele lembrou que o subsídio sempre implica em redirecionar recursos: “O cobertor é curto, se tira de um lado para colocar em outro. Cabe à sociedade decidir”.
O economista apresentou comparações: em Mariana, o gasto anual gira em torno de R$ 1,6 milhão para uma frota de 32 veículos; já em Leopoldina, o custo é de R$ 1,4 milhão com 40 veículos. Esses números servem como parâmetro inicial, mas, segundo ele, é preciso calcular com precisão a realidade de Viçosa, considerando frota, demanda e orçamento.
Evonir também chamou atenção para a diferença de receitas entre municípios, lembrando que cidades como Maricá, com royalties do petróleo, ou mesmo Mariana, com receitas da mineração, possuem condições mais favoráveis que Viçosa, cujo orçamento é mais limitado.
Ele sugeriu ainda que uma alternativa seria implantar tarifas parciais ou específicas em determinados dias ou horários, como fins de semana, para estimular o comércio e os deslocamentos, avançando gradualmente até uma eventual Tarifa Zero plena.
Também do Departamento de Economia da UFV, o professor Adriano Provenzano Gomes destacou que a cidade tem uma característica particular: um número elevado de passageiros em relação à população residente, por conta da população flutuante universitária, o que eleva significativamente a demanda pelo transporte coletivo.
Segundo Adriano, hoje o sistema de transporte em Viçosa movimenta cerca de 331 mil passageiros pagantes e 110 mil não pagantes, totalizando 442 mil usuários mensais. O custo mensal estimado do serviço é de R$ 1,4 milhão, o que resulta numa tarifa de equilíbrio de R$ 4,22 por passageiro.
O professor explicou a lógica dos subsídios: “Para cada R$ 100 mil investidos em subsídio, a tarifa pode ser reduzida em R$ 0,30. Para zerar o valor da passagem, seriam necessários aproximadamente R$ 1,4 milhão por mês, mantendo a quilometragem atual”.
Adriano ponderou que cidades como Mariana ou Maricá possuem receitas adicionais, como mineração e royalties do petróleo, que viabilizam políticas públicas robustas. Já Viçosa, com orçamento mais restrito e sem grandes compensações financeiras, precisa avaliar com cautela a sustentabilidade do modelo.
“Não somos contra a Tarifa Zero. Ao contrário, acreditamos que traria benefícios sociais importantes. Mas é fundamental fazer as contas e avaliar os limites do orçamento de Viçosa, para garantir que o programa seja viável e sustentável”, concluiu.
ESTUDOS E IMPACTO SOCIAL
O economista André Veloso, do Movimento Tarifa Zero BH, participou remotamente e defendeu a viabilidade da medida no município. Pesquisador do tema desde 2010, Veloso afirmou que o debate não deve se restringir apenas às contas, mas também considerar o papel social do transporte. “O economista não pode ser desmancha-prazer. Nosso papel é pensar a distribuição de trabalho e riqueza e como viabilizar a vontade social”, disse.
Ele lembrou que a tarifa unificada foi, historicamente, um passo importante para reduzir desigualdades, ao permitir subsídio cruzado entre linhas superavitárias e deficitárias. Comparando Viçosa a outras cidades, destacou que o custo mensal estimado de R$ 1,4 milhão não é impeditivo: “Não me parece um custo tão alto para uma cidade universitária, com papel regional significativo”.
Veloso citou que hoje 138 municípios brasileiros já adotam o modelo de gratuidade universal, a maioria com população entre 50 e 100 mil habitantes, como é o caso de Viçosa. Ele ressaltou ainda que a política traz benefícios indiretos, como a redução de gastos com vale-transporte, a liberação de renda para famílias de baixa renda e o estímulo à economia local.
A medida também foi defendida pelo professor Roberto Andrés, da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, que apresentou dados e experiências de cidades que já adotaram a medida. “Não é um achismo, mas uma questão empírica. Em 97% das cidades que implantaram a Tarifa Zero, a política foi mantida, independentemente de mudanças de governo”, disse.
Roberto ressaltou que a gratuidade no transporte garante direitos básicos de mobilidade a famílias de baixa renda, ampliando o acesso a serviços essenciais, empregos e oportunidades. Citou ainda efeitos como a redução do trânsito e dos acidentes de transporte, com casos como Paranaguá (PR), que registrou queda de até 50% nos acidentes após a medida.
Outro ponto destacado foi o impacto econômico: cidades com Tarifa Zero têm registrado aumento de vendas no comércio, crescimento na geração de empregos e empresas, além de redução de emissões de gases do efeito estufa. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou aumento de 3% no número de empregos e de 7% no número de empresas em municípios com transporte gratuito.
Sobre a viabilidade financeira, Andrés observou que a maioria das cidades investe entre 1% e 3% do orçamento municipal para manter o sistema, percentual que em Viçosa, segundo ele, também seria suficiente. “Muitos municípios gastam mais com coleta de lixo do que gastam para transportar pessoas. Em Viçosa, a política poderia ser acomodada no orçamento sem grandes dificuldades. [...] A Tarifa Zero fortalece a vida cultural, o comércio e a economia local, reduz o trânsito e corrige desigualdades. Viçosa teria muito a ganhar com essa política”, ressaltou.
Representando os estudantes da UFV, o diretor do DCE, Lucas Alves Damasceno, reforçou a relevância da Tarifa Zero como projeto de sociedade e não apenas como medida de gestão. Ele destacou que muitos estudantes da UFV vivem situações de exclusão social, chegando a ter que escolher entre frequentar aulas ou pagar refeições no restaurante universitário, porque não conseguem arcar com os custos de transporte. Para ele, a Tarifa Zero poderia mudar esse cenário, garantindo acesso à cidade e ampliando a justiça social.
O representante do DCE também ressaltou que Viçosa tem potencial para ser referência nacional na implantação da política, especialmente por seu perfil estudantil e pela articulação entre universidade, sociedade civil e poder público. “Essa audiência pública marca a história. Não se trata apenas de discutir se é possível, mas de afirmar que é necessário. A juventude e os estudantes estão dispostos a construir esse projeto junto com a cidade”, concluiu.
Durante a participação do público, Daniela, doutora em arquitetura e urbanismo e pesquisadora de mobilidade urbana, destacou a importância da participação popular e da transparência na análise dos custos do transporte público no município.
Ela alertou para o colapso do sistema local, apontando que “cerca de 30 a 40% da população não é bem atendida hoje pelo transporte público”, principalmente famílias de periferias com orçamento mais apertado. Daniela também questionou a eficácia de subsídios: “O subsídio nas cidades afora não salvou o sistema de transporte, ele continua afundando mais e mais. Não acho que a solução vai ser por aí.”
A pesquisadora ressaltou a necessidade de cálculos claros e transparentes para entender o destino do dinheiro arrecadado e o custo real do transporte: “Temos que fazer as contas, mas têm que ser contas que tenham transparência, para a gente conseguir analisar o que está acontecendo”. Ela concluiu reforçando que a medida também poderia reduzir acidentes, aliviar o SUS e diminuir gastos com manutenção da infraestrutura urbana, defendendo uma visão ampla e integrada dos efeitos da Tarifa Zero.
SUBSÍDIO E NOVA LICITAÇÃO
O secretário de Governo de Viçosa, Marcos Roberto Fialho, destacou que o município enfrenta limitações orçamentárias semelhantes à maioria das cidades brasileiras, o que dificulta a adoção imediata da gratuidade total no transporte coletivo.
Ele lembrou que, recentemente, a Câmara aprovou e a Prefeitura está aplicando subsídio de R$ 1,1 milhão à empresa para os próximos quatro meses, o que permitiu reduzir a tarifa de R$ 4,20 para R$ 3,00. Esse valor foi calculado a partir de estudos da UFV e da Comissão de Trânsito, considerando a média mensal de 450 mil passageiros.
Fialho ressaltou que a maior parte dos usuários do transporte coletivo em Viçosa são estudantes e famílias em situação de vulnerabilidade econômica, para quem a despesa com transporte chega a representar até 17% da renda mensal.
Outro ponto levantado foi a situação contratual do sistema. Ele explicou que a Justiça declarou inválido o contrato vigente com a empresa concessionária, obrigando o município a realizar uma nova licitação. Para isso, a Prefeitura contratou uma fundação ligada à USP, responsável pela elaboração do estudo técnico e do edital de concessão. O investimento será de R$ 470 mil, com previsão de retorno desse valor aos cofres municipais após a assinatura do novo contrato. O prazo estimado para conclusão do processo é de 12 meses.
O secretário afirmou que, enquanto a licitação não é concluída, o município seguirá atuando com subsídios para tornar o transporte mais acessível. Ele também citou a possibilidade de Viçosa aderir a políticas federais em discussão, como a Tarifa Zero aos domingos e feriados, com o município arcando com até 50% a 60% dos custos, desde que haja contrapartida do governo federal.
“A Tarifa Zero é um objetivo legítimo, mas hoje dependemos de novos contratos e de apoio externo para viabilizar financeiramente essa política. O município está disposto a investir, mas precisamos do suporte dos demais entes federativos”, afirmou Fialho.
A vereadora Marly Coelho questionou o secretário sobre a possibilidade de avançar na Tarifa Zero em Viçosa antes da conclusão do processo licitatório da empresa de transporte coletivo, que deve levar 12 meses. Ela destacou que, mesmo que a implementação total só seja possível depois desse período, seria interessante estudar alternativas parciais, como atender apenas finais de semana ou determinados grupos da população, aproveitando os benefícios para a economia e a vida social.
O secretário Marcos explicou que o primeiro passo é regularizar a situação legal e orçamentária do município. Ele afirmou que o estudo técnico e a escuta da sociedade são essenciais para planejar o transporte coletivo de forma adequada. “Temos que fazer um estudo técnico avançado para atender melhor a sociedade. Talvez num novo formato com mais linhas e outras rotas, teremos um custo ainda maior”, explicou Fialho.
O vereador Marco Cardoso destacou os desafios enfrentados pelo transporte coletivo no município, especialmente após a pandemia, quando cerca de 50% das linhas deixaram de operar e os horários foram reduzidos. Ele ressaltou que o custo dos ônibus também dobrou nesse período, aumentando de aproximadamente R$ 400 mil para R$ 800 a 900 mil por veículo. “Antes de pensar em tarifa zero, precisamos ter um planejamento. Se não ajustarmos os horários e a frota, o custo pode chegar a R$ 30 milhões, um valor que o município não conseguiria arcar sozinho”, ressaltou.
O diretor de Mobilidade Urbana da Prefeitura de Viçosa, José Mauro Chaves, reconheceu as limitações financeiras do município, apontando que Viçosa possui receitas menores em comparação com cidades de porte semelhante, mas destacou a sensibilidade do prefeito às causas sociais: “Nosso prefeito é muito sensível às causas sociais e tem demonstrado isso durante este governo”. Em resumo, José Mauro enfatizou que, apesar das limitações orçamentárias, há disposição política e técnica para avançar na discussão da tarifa zero, com base em estudos especializados e experiências exitosas em outras cidades.
ENCAMINHAMENTOS
Na fala de encerramento, a vereadora Jamille enfatizou que a proposta da audiência é repensar o direito ao transporte e a forma como o orçamento municipal pode ser remanejado para garantir o acesso a outros direitos, como saúde, educação, cultura e lazer. Diante da inviabilidade financeira para implantação imediata, Jamille sugeriu ainda alternativas escalonadas, como a gratuidade em finais de semana ou feriados.
Jamille ainda propôs a criação de uma comissão representativa para realizar um estudo aprofundado sobre a viabilidade da tarifa zero, considerando as peculiaridades de Viçosa, como a extensão da zona rural e os bairros periféricos. Ela também criticou a falta de transparência das comissões existentes: “A gente não fica sabendo das reuniões, a gente não fica sabendo do que tá acontecendo. Aí quando chega a notícia do aumento da passagem, ah, que a comissão se reuniu e aprovou o aumento da passagem. Mas como assim? Quem participou?”, questionou.
Em resposta, o secretário Marcos Fialho afirmou que a prefeitura já trabalha em melhorias do transporte coletivo e destacou a importância de unir as comissões existentes e incluir novos membros para enriquecer o debate: “A comissão proposta aqui, vereadora, acho que é muito benéfica… vale unificar e adicionar membros que possam ajudar, enriquecer, como foi aqui hoje”. O secretário ressaltou ainda que, mesmo sem possibilidade de implementação imediata, a gestão seguirá avaliando e aprimorando os serviços, com estudos técnicos e possíveis ajustes em futuras licitações, visando garantir melhorias para a população de Viçosa.
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Foto: Divulgação/Câmara de Viçosa